A Série Avenida Paulista apresenta as construções do antigo número 144 da avenida, que foi propriedade de várias pessoas, como o Dr. Francisco Inglez de Souza, Dr. Francisco de Paula Peruche e Demetrio Calfat. Uma casa que foi sendo transformada e habitada por muitos no início do século passado.

Depois deste casarão
O primeiro registro que temos desta residência aparece em agosto de 1907, quando abrigava o Consulado da Áustria e Hungria, que ocupou o lugar até agosto de 1908. Depois disso, em algum momento, a casa foi vendida para o Dr. Francisco Marcos Inglez de Souza e reformada por Ramos de Azevedo em 1915.
Em 1917 a casa aparece em nome do Dr. Francisco de Paula Peruche, permanecendo até o início dos anos 20. Em algum momento deve ter sido vendida para Demétrio Calfat, que novamente a reformou. A propriedade permaneceu por várias décadas na família Calfat até a sua demolição, para dar lugar ao prédio que hoje se encontra na esquina da Rua Manoel da Nóbrega (ao lado da Avenida Brigadeiro Luis Antônio) com a Avenida Paulista. Por conta de todas essas mudanças, hoje apresentaremos um pouco de cada um dos moradores da mansão de número 144 da antiga Avenida Paulista.
O Dr. Francisco Marcos Inglez de Souza nasceu em 1860 em Manaus. Formou-se na Faculdade de Direito de São Paulo em 1885 e casou-se com Cândida Leitão. Teve três filhos. Foi um grande fazendeiro, dedicando-se à lavoura. Em 1902, foi morar em Santos com sua família, e abriu com outros sócios a empresa comercial Junqueira, Magalhães, Leitão e Companhia para a exportação de café e outros congêneres. Fundou e presidiu, nesta cidade, a Associação Comercial e se tornou um benemérito da Santa Casa de Santos e do Asilo de Órfãos.
A empresa Junqueira, Magalhães, Leitão e Companhia, como mostra o nome, foi formada por membros de famílias que eram parentes entre si: os Junqueira, os Inglez de Souza e os Leitão. Os laços eram fortes entre elas, na foto abaixo de 1910 podemos ver um passeio das senhoras das famílias.

O Dr. Francisco Marcos Inglez de Souza voltou a residir em São Paulo em 1909 e faleceu em junho de 1911. Supomos que a família Inglez de Souza tenha adquirido a casa da Avenida Paulista neste período antes de seu falecimento, pois o imóvel ainda continuou em seu nome e de sua esposa até depois de 1915, quando foi reformada/ reconstruída por Ramos de Azevedo.

O Dr Francisco teve três irmãos: José Marcos Inglez de Souza (1850 – 1908), Carlota Henriqueta de Souza (1851 – 1903) e Herculano Marcos Inglez de Souza (1853 – 1918). Este último, tornou-se um escritor conhecido, autor de “O Missionário” e tido como introdutor do naturalismo na literatura brasileira por meio do seu romance “O Coronel Sangrado“.
Outra curiosidade é que Oswald de Andrade era filho de Henriqueta Inglês de Souza Andrade, irmã do Dr Francisco. Oswald, em seu trabalho “Um homem sem profissão”, refere-se às muitas habilidades intelectuais do tio Herculano, entre elas o fato de ele ter sido o autor do “Código Comercial” e ser membro fundador da ABL – Academia Brasileira de Letras. Sua mãe herdou os bens da família, pois o avô proporcionou estudos apenas aos filhos homens.

Sobre a casa da Paulista, construída por Ramos de Azevedo, verificamos que no mesmo período, ele também projetou a casa de Noêmia Inglez de Souza, que era filha do Dr. Francisco Marcos Inglez de Souza e foi casada com José Mario Junqueira. As duas construções mostram estilos parecidos, que se mostram nas folhas dos telhados, nos ornamentos das janelas arredondadas, nos três níveis de construção. A história desta outra casa pode ser conferida na Série Avenida Paulista, no texto “Casarão de José Mário Junqueira Netto e o Mangalarga 53” neste link.

Entre outubro de 1915 até março de 1919, a casa já aparece como sendo a residência do Dr Francisco de Paula Peruche, médico especializado em tratamento de crianças, ou seja, um pediatra, que em anúncio de jornal, informava ter experiência em Paris. A surpresa é que o Dr. Francisco se casou com a viúva do Sr. Inglez de Souza, a Sra. Cândida Leitão e, posteriormente, supomos que com a morte dela, o médico casou-se novamente com Zaida Pereira.

Na Revista Apartes, no texto intitulado “A gripe que derrubou São Paulo” de Fausto Salvadori, vimos publicado a participação do médico na gripe espanhola:
E havia Francisco de Paula Peruche, que afirmava curar a espanhola com injeções de “óleo cinzento”, que não passavam de um misturado contendo 40% de mercúrio puro. O conhecimento científico atual sabe que as injeções não faziam nada além de intoxicar os rins, o fígado e o sistema nervoso central de seus pacientes, mas Peruche não destoava da medicina de sua época.
O Dr. Francisco de Paula Peruche, além de médico, foi também um grande investidor em terras, inclusive dirigindo e fazendo parte do conselho da Associação de Proprietários de Imóveis de São Paulo por vários anos. Aparecem nos jornais da época, em nome do médico, duas casas na Alameda Santos, um terreno à Rua Cubatão e outro na Avenida Brigadeiro Luis Antonio e inúmeros lotes no sítio do Mandaqui.

O Dr. Peruche foi proprietário de grande extensão de terras entre as cidades de Santo André e São Bernardo do Campo, onde foi construído o bairro que hoje é chamado Parque das Nações. Em 1925, ele realizou um loteamento de 72 alqueires da Fazenda Oratório, dando origem ao chamado “Parque Velho”.
O curioso é que, além de vender o terreno, o médico sugeria ao comprador que a construção da casa seguisse alguns modelos já padronizados – o comprador escolhia um deles e os pedreiros do próprio Dr. Peruche construíam as casas. Esse local, com exceção da Rua Oratório, principal do bairro, as demais ruas recebem nomes de países, principalmente os da Europa e América, por isso o nome do bairro. Lá também está, em sua homenagem, a Praça Francisco de Paula Peruche.
O médico também adquiriu muitas terras na zona norte da cidade de São Paulo, na área do antigo Sítio do Mandaqui. Este local deu origem ao Parque Peruche, que foi fundado em 3 de abril de 1935. Muitos anos depois, o local se tornou um reduto de sambistas e deu início à Escola de Samba Unidos do Peruche.

No texto “Um caso de amor entre uma escola formal e uma escola de samba” de Cristina Fernandes de Souza é descrito o início do bairro:
Oficialmente, em 3 de abril de 1935, um médico, Doutor Francisco de Paula Peruche, adquiriu uma área de 929.330m², do antigo Sítio Mandaqui, que foi denominada Parque do Peruche, a partir dessa data. O bairro tem uma forma geométrica bem definida, resultado de um aproveitamento melhor do espaço para o loteamento. Assim, predominando a lógica da máxima valorização mercantilista do espaço, não foi criada nenhuma praça ou área de lazer. Além disso, muitos terrenos vendidos localizavam-se em áreas baixas, sujeitas a alagamentos.
Foi nesse espaço que assentou moradia uma grande população de negros, vindos da região do Córrego do Saracura, onde hoje é a Av. 9 de Julho, na região do Bexiga, zona central da cidade de São Paulo. Os negros resgataram suas tradições e imprimiram sua cultura, desde as origens do Parque Peruche, daí a forte presença do samba no bairro.

Contribua com a Série Avenida Paulista: se tiver uma foto antiga em que este casarão/edifício/local público apareça ou se conhecer alguém que possa fornecer mais informações sobre a residência ou edifício e pessoas relacionadas (família, amigos e outros), entre em contato com a gente. Muito obrigada!
