Você sabia que a Paulista na época dos casarões tinha casas de aluguel no início do século passado? Sim, tinha muitas e hoje contaremos a história de uma delas.


Depois deste casarão
Eram duas casas geminadas, de propriedade do Sr, Azevedo Marques, que foram construídas para investimento como o objetivo de serem colocadas para aluguel. Atualmente, no local encontra-se o edifício Paulista 407.
O projeto arquitetônico das casas era de autoria de Ramos de Azevedo, que as construiu em 1911, no mesmo ano em que também construiu na Paulista a residência do Sr. Azevedo Marques, que morava quase em frente a elas.
Entre os anos de 1917 e 1930 verificamos em listas telefônicas da época que a casa de número 154 teve apenas um locatário: foi alugada por Henrique Metzger, e a casa 156, teve dois locatários: Braz Alario até meados de 1920 e João Reuter depois dele.
Em dezembro de 1921 o Sr. Braz Alário aparece em uma notícia de jornal informando que o empresário tinha adquirido um terreno na altura do número 33 da Avenida Paulista (o texto pode ser lido neste link), portanto deixou a casa de aluguel quando construiu sua casa.
Henrique Metzger, da casa de número 156, era um comerciante que importava muitos tipos de produtos para vender em lojas no centro da cidade. Em anúncio de jornal de 1916 verificamos a diversidade de produtos oferecidos, que iam desde remédios – com grande enfoque – à banha, bacalhau, velas, açúcar, arame farpado, cimento, fósforos, telhas, soda caustica, vinhos, farinha de trigo etc.

Em 1920, um pedido de concordata da empresa foi feito pelos Bancos Ítalo-Belga e Francês e Brasileiro juntamente com a Moinho Santista. Apesar disso, o comerciante continuou com as importações e vendas, e a partir daí recebeu muitos protestos de prováveis credores.
Depois disso, soubemos que a casa 156 foi ocupada pela família italiana Mignone e essa história quem vai nos contar é Loreana, bisneta de Angelina De Cunto Mignone, que alugou a casa.
Essa é uma típica história de imigrantes italianos que vieram para São Paulo no começo do século passado para “fazer a América” e que teremos o prazer de saborear. Agradecemos imensamente a Loreana pelo compartilhamento desta história tão genuína e muito característica de muitos cidadãos paulistanos.
Com a palavra Loreana:
Foi minha bisavó quem alugou a casa da Avenida Paulista: Angelina De Cunto Mignone, que era casada com Giuseppe Mignone. A casa tinha 14 metros de frente e era geminada, como podemos ver na foto acima.
De frente a casa não parecia grande, mas era muito profunda, tinha 70 metros de profundidade. Ainda está lá o resistente Instituto Pasteur, ao seu lado direito.
Minha bisavó começou a morar nessa casa, com certeza, no começo da década de 30. Logo quando ela alugou, ela fez da casa que alugou uma pensão familiar, atividade muito comum dos italianos que vieram para o Brasil, pois era uma forma de fazer dinheiro rápido.
Também moraram na casa, minha avó, Filomena Mignone Costantino, casada com Ferdinando Costantino, que tiveram 2 filhos: minha mãe, Angela Elliana Maria Costantino, e meu tio, José Alessandro Costantino.

Minha bisavó trabalhava com os Matarazzo, foi governanta da casa de uma irmã da Condessa Virgínia Matarazzo Hipólito, que também morava na Avenida Paulista, perto do 1740, onde era o Banco Real e hoje é o Brazilian Financial Center.
Meu avô trabalhava no banco dos Matarazzo, da Praça Patriarca, e também era uma espécie de cobrador – ia atrás dos devedores. Era comum as famílias de imigrantes trabalharem com os Matarazzo – isso porque eles costumavam empregar aqueles que vinham de Castellabate, em Nápoles, na Itália, cidade natal de meus bisavôs.

Castellabate é uma vila medieval encantadora localizada no Parque Nacional do Cilento, no extremo sul do Golfo de Salerno. Encrustada em uma montanha, a vila tem cerca de 8.500 habitantes e 36 km², com casas feitas em pedra nas vielas, com vista para o mar do Golfo de Salerno. Em 1998, a UNESCO declarou Castellabate com Patrimônio Mundial. De lá vieram os Matarazzo e muitas outras famílias italianas.
Minha avó era prima do maestro Mignone, talvez o parente mais conhecido da família. Pianista, regente e compositor de música erudita brasileira, talvez uns dos mais importantes do Brasil.

A história da minha bisavó dá um filme. Ela nasceu em Castellabate, e já era comprometida para casamento, com meu bisavô porque as famílias eram amigas.
Os tios do pai do noivo resolveram criar minha bisavó. A mãe dela, que tinha outros oito filhos, terminou, depois de reagir, aceitando dar a menina para ser criada por eles. Afinal, as duas famílias iam se unir. No entanto, minha bisa nunca amou o meu bisavô, mas depois de seis anos se negando a ficar com ele, terminou se casando.
Os pais adotivos dela não a permitiam sair de casa até que ela cedesse e se casasse. Mas houve um fato, antes do casamento, que merece ser relatado: ela, enquanto se recusava a casar, apareceu no sobrado da casa durante o Carnaval de Castellabate.
Os foliões, ao vê-la na varanda, foram até a casa onde ela estava e pediram para o pai adotivo deixá-la descer. Esse pai adotivo queria bater nos rapazes! – era um homem de 2 metros, ameaçador. Nós temos uma pintura dele em casa. Brinco que ele parece um pouco o Freud… É interessante porque foi pintado em uma tela de lata! Particularmente, eu adoro esse quadro.

Ela ficou em Castellabate durante a primeira guerra, com quatro filhos, enquanto meu bisavô vinha para o Brasil vender os enxovais que ela costurava.
Terminada a Primeira Guerra, ela veio para o Brasil com 4 filhos – os que sobraram, porque ela perdeu duas filhas na epidemia de gripe espanhola. Ela era uma mulher fantástica. Todos que vinham de Castellabate paravam para falar com ela e pedir conselhos. Ela era uma figura importante no povoado de Castellabate.
Primeiro, eles moraram em Jaú, onde meu bisavô abrira um hotel (Hotel Mignone). Depois, como não tiveram muito sucesso, resolveram mudar para Santos e continuaram com o Hotel.
Nessa época, minha avó, adolescente, conheceu meu avô. Eram vizinhos, e minha avó, extrovertida, realizava o que hoje podemos chamar de bailinhos no Hotel. Ela saía para o quintal e via meu avô, que claro, se apaixonou por ela.

Ele era um napolitano bravo, mas lindo…! Meu avô materno, que esteve na I Guerra Mundial, com 17 anos e no norte da Itália, passou uma noite toda dentro de um rio, com água até os joelhos, o que lhe deixou com reumatismo pelo resto da vida. Também não tive a felicidade de conhecê-lo. Diziam que quando a pessoa o conquistava, ele se transformava: ficava alegre, amável. Ele gostava de cantar e de falar o dialeto napolitano. Até a empregada da casa, Adelina, que ficou com minha família mais de 50 anos, entendia tudo o que ele dizia.
Infelizmente, o Hotel Mignone sofreu um incêndio e eles perderam tudo. Então, com a roupa do corpo, toda minha família resolveu vir para São Paulo. Minha bisavó resolveu tentar a pensão na cidade. Eles ficaram hospedados com amigos, até ela conseguir alugar a casa na Avenida Paulista. Acredito que ela tratou com a esposa do arquiteto que fez a planta da casa.
Minha família viveu momentos maravilhosos na casa da Paulista, como o casamento de “Mena”, apelido de minha avó Filomena. A foto abaixo foi tirada na entrada da casa da Av. Paulista, toda enfeitada para a festa. Ela se casou em 1934.


Foi uma linda festa com muitos familiares e convidados. A fotografia foi feita nos fundos da casa da Paulista. Do lado direito da imagem, é possível ver a parte lateral do Instituto Pasteur, e do lado esquerdo, a casa dos Ambuba
Minha mãe passou a infância e parte da adolescência na casa da Paulista. São muitas lembranças de uma casa que a abrigou durante este período da vida. Ela lembra que brincava com meu tio, na ladeira da casa. Havia uma ladeira imensa, e eles corriam, subindo e descendo. Imagina que gostoso que deveria ser?

Minha mãe no portão da casa. O que será que que havia nestas mãozinhas que fez com que ela levantasse a perninha para melhor mexer no que gerou sua curiosidade!!!
Ela conta também que meu avô colocava naquelas vitrolas antigas, músicas napolitanas, de Roberto Murolo, e eles adoravam ouvir. Quer ouvir um pouquinho?
Essa música chama-se Voce ‘e notte (“Voz da Noite”). Em um trecho, ele canta para sua amada não ir até à janela porque ela tem certeza de que é ele, seu admirador. E minha bisavó, que foi brindada com essa serenata de um admirador, estava de fato espiando para saber quem era o admirador. Na verdade, foi meu bisavô que estava cantando para ela.
Minha família sempre amou essas músicas. Minha bisavó esteve na Itália em 1948, e quando retornou, trouxe partituras dessas músicas. Meu tio lembra de minha mãe tocando piano na casa.
Voltando para a casa da Avenida Paulista.
Como podemos ver nos desenhos do projeto de Ramos de Azevedo realizado para o Dr. Azevedo Marques, as casas eram geminadas, de dois andares, tinham uma bela fachada, com duas salas e 4 dormitórios no piso superior.

O corte longitudinal mostra que as casas eram profundas, com uma extensa área ao fundo com apenas o pavimento térreo. O quarto de minha mãe era o da varanda. O do meu tio era o que ficava em cima da entrada principal.

Minha avó morou na casa por uns 20 anos; meu avô teria comprado, mas a dona acabou vendendo porque recebeu uma proposta mais vantajosa. A proprietária era a esposa de Azevedo Marques, a Ana de Azevedo Marques, que morava em frente ao Pasteur, esquina com a Carlos Sampaio. Minha avó atravessava a rua para pagar o aluguel.
Eles moravam na casa do lado esquerdo, e na casa da direita, morava uma família de árabes de sobrenome Ambuba. As famílias davam-se muito bem, mesmo depois de sair da casa, minha avó manteve contato com eles.
Como muitos outros sírios libaneses que moraram na Avenida Paulista, Abdo Ambuba nasceu na cidade de Homs, na Síria. Como imigrante, chegou ao Brasil em 1900 e estabeleceu-se com o comércio de tecidos e armarinhos e depois montou uma indústria. Antes da Paulista, a família morou em um grande sobrado, onde tinham a loja na Rua Oriente, lugar onde nasceram os filhos de Abdo.
Foi grande benemérito, um dos fundadores do clube Homs, localizado na Avenida Paulista, contribuindo com várias instituições de caridade como: Sanatório Campos do Jordão, Sociedade Beneficente da Mãe Branca da Velhice, e auxiliou diversas Instituições e Igrejas existentes em São Paulo.
Voltando a história de Loreana:
Recentemente, meu tio José Alessandro montou uma maquete da casa da Avenida Paulista para termos de lembrança.

A casa tinha 4 quartos no segundo andar; 3 deles minha bisavó alugava. No primeiro andar, havia um quarto que dava para o quintal – o quarto dos fundos, era o da minha avó. Ela alugava um quarto desse andar também. A sala de visitas também ela subalugava.
Minha mãe disse que havia 3 quintais, iguais em tamanho, mas como era uma descida, um ficava abaixo do outro. A garagem era imensa. Cabiam 3 carros. Havia uma espécie de sótão – uma abertura que permitia acesso ao carro à parte inferior.
No vídeo abaixo podemos ver a casa da família Mignone no esplêndido trabalho em computação gráfica realizado no Janela da História, de autoria de Marcus Uchoa. O projeto mostra, em três dimensões e em movimento, muitas casas da Avenida Paulista no início do século passado. Para conhecer o Janela da História
Minha mãe deixou a casa com 17 anos e, meu tio, com 13 anos. Ficaram na Avenida Paulista até 15 de junho de 1953. Foram morar bem próximo, na Rua Silvia, onde meu avô comprou o terreno e construiu uma nova casa.
A dona da casa, Ana Azevedo Marques, apesar de ter vendido para outra pessoa, esperou que meu avô construísse a casa da Rua Sílvia. Demorou 9 meses. Depois disso, a casa da Paulista ficou fechada por alguns anos, sendo demolida no começo dos anos 70.

Que bela história que a Loreana compartilhou conosco, não é mesmo?
Agradecemos imensamente a ela que, muito gentilmente, compartilhou conosco a história de sua família e da casa em que moravam na Avenida Paulista.

A história contada por ela sobre a família Mignone é parecida com a de tantas outras de famílias italianas, inclusive a desta que escreve esta Série Avenida Paulista. Minha família, meus avós e tios, também vieram de Castellabate e moraram muitos anos perto da Avenida Paulista, na Rua Treze de maio, na Bela Vista, e na casa, também mantinham uma pensão com aluguel de quartos.
Peço licença a Loreana para compartilhar uma foto tirada em uma viagem que fiz com minha mãe e irmã em 2013 para a Itália. Na imagem pessoas de minha família – parte daqui e parte de Castellabate – na linda torre, construída com pedras na idade média, da igreja matriz de Castellabate.

Obrigada, Loreana! Até a próxima semana!
Contribua com a Série Avenida Paulista: se tiver uma foto antiga em que este casarão/edifício/local público apareça ou se conhecer alguém que possa fornecer mais informações sobre a residência ou edifício e pessoas relacionadas (família, amigos e outros), entre em contato com a gente. Muito obrigada!
One thought on “A casa alugada da família Mignone na Avenida Paulista”
Pingback: O Paulista 407 na Avenida Paulista | Série Avenida Paulista