Muito pouco foi divulgado, nunca na Série Avenida Paulista, acerca da história pregressa da Paulista antes de virar a bela avenida. Ela foi inaugurada em 8 de dezembro de 1891, com projeto e realização da empresa Sociedade Anônima Companhia Viação Paulista, de propriedade do engenheiro uruguaio Joaquim Eugenio Lima, do capitalista de José Borges de Figueiredo e o servidor público, João Augusto Faria. Muitos conhecem a pintura histórica acima, que retrata o dia da sua inauguração. (Autor: Jules Victor André Martin, 1891. Técnica aquarela. Dimensões: 45,5 cm x 66,9 cm. Acervo: Museu Paulista).
Alguns textos mencionam a localidade original, que foi chamada de Alto do Morro Caaguaçu, como o ponto mais alto de São Paulo, e também a existência de um caminho denominado Estrada da Real Grandeza, que servia para a passagem de bois que iam em direção ao matadouro.
Nosso objetivo é voltar alguns anos antes para assim chegar no dia de sua inauguração: vamos voltar uns 300 anos. Muito antes da inauguração e inclusive dos 300 anos, eram as tribos indígenas que viviam na região e chamavam o lugar de Morro do Caaguaçu, que significa “Mata-Grande” no dialeto tupiniquim. Nesta época, a vegetação era densa e coberta com árvores muito altas como o Jatobá, Pau-ferro, Embaúba, entre outras.
Mas antes de continuarmos é imprescindível dizer que essa reconstrução da história só foi possível pela inestimável colaboração do Luiz E. Simonetti, que nos enviou dados, imagens, mapas e que escreveu este texto que agora publicamos. Vale salientar que Benedito Antônio da Silva, nosso principal personagem desta narrativa, é tataravô dele. Nada melhor que um descendente para contar a histórias de seus antepassados.
A região ao arredor do centro de São Paulo era dividida em chácaras, grandes porções de território pertencentes a famílias de origem portuguesa. Segundo Simonetti, 300 anos antes da inauguração, iniciamos a história com a região da Chácara do Capão, que pertenceu a Fernão Dias Pais e Lucrécia Leme, passando por 10 proprietários nestas 3 centenas de anos, entre eles, descendentes e não descendentes, até a compra pelo major Benedito Antônio da Silva, o 11º proprietário, e sua esposa, d. Claudina da Anunciação, que curiosamente eram ambos descendentes dos primeiros proprietários quinhentistas, Fernão Dias e Lucrécia Leme.
A Consolação antes da Avenida Paulista
Os Silvas, assim como os Lemes, seus antecessores em séculos anteriores, tiveram sua história conectada com a área onde se encontra a Rua da Consolação em grande parte do Século XIX, com propriedades localizadas na região. A família tinha como patriarca, nos últimos anos do Século XVIII, o sargento-mor José da Silva de Carvalho, pai do Barão do Tietê (José Manuel da Silva) e d. Claudina da Anunciação e Silva, esposa de Benedito Antônio, que era também sobrinho-neto do sogro.
Silva de Carvalho ocupou diversos cargos, sendo apontado primeiramente por D. João VI como oficial superior de ordenanças, comandante de Santo Amaro e Itapecerica. Um destes cargos que lhe foram atribuídos ainda em 1810 foi o de “inspetor geral das matas” de Santo Amaro, São Bernardo e Caaguaçu. Ficou encarregado de inspecionar, administrar e preservar as matas de uma grande área ao redor de São Paulo. O corte de madeira em todo a região, começando na Consolação até a região da Serra, em direção ao litoral, foi administrado por ele.
Era de grande importância para a cidade de São Paulo, como se lê nos documentos da Câmara de São Paulo a preservação destas matas, mesmo por motivos de necessidade, São Paulo já enfrentava problemas de desmatamento, lembrando que as pessoas usavam madeira como combustível, tanto para cozinhar quanto para se aquecer. Além da necessidade central no setor de construção.
Mesmo com a grande necessidade havia desperdício, muitos agricultores desperdiçavam e desmatavam desnecessariamente, gerando grande prejuízo a toda a sociedade. Para colocar fim a estes abusos foi apontado ao cargo mencionado o então capitão Silva de Carvalho.
Um pouco antes do período em que a propriedade foi de Benedito Antônio, aconteceu a constituição da Imperial Irmandade da Consolação e São João Baptista sob proteção do Imperador D. Pedro II. Fundada por José Manuel da Silva, o Barão do Tietê, provedor da irmandade, o mesmo Tietê chegou a ser proprietário de uma das propriedades vizinhas, a Chácara do Bexiga.
O Capão também tinha como vizinhos a família Silva Prado, que possuíam laços de parentesco e foram associados dos Silva tanto na política quanto em empreendimentos. O Barão de Iguape (Antônio da Silva Prado) e o do Tietê foram sócios por décadas.
Na geração seguinte Benedito Antônio e o Conselheiro Antônio da Silva Prado também foram sócios em múltiplos empreendimentos, além de estarem entre os cofundadores da União Conservadora, a ala mais moderada do partido conservador do Império, que apoiou a Princesa Isabel e o gabinete na abolição da escravidão, o que de fato ocorreu, com dois ministros paulistas, ocupando importantes pastas ministeriais de então.
Foi justamente um Silva e um Silva Prado, Rodrigo Silva e Antônio da Silva Prado, que formavam uma dupla dentro do gabinete conservador em 1888. Rodrigo Silva foi o autor e referendou a Lei Áurea e Antônio da Silva Prado foi fundamental no processo. Todos foram ligados à região da Consolação, Rodrigo Silva foi inclusive provedor da Imperial Irmandade da Consolação após a morte de seu pai, o Barão do Tietê.
Em vermelho a área da sede do Capão que foi vendida a Mariano Antônio Vieira, em verde a área restante do Capão que foi retida por Benedito Antônio da Silva. Menos da metade da área original foi vendida em 1880, o restante foi sendo subdivido primeiramente por Benedito Antônio da Silva e depois por outros proprietários. Importante salientar, que diferente do que vem sendo publicado por diversos estudos baseados em um artigo publicado por A. Paim Vieira, Mariano Antônio Vieira nunca comprou o Capão em sua extensão original, apenas uma parte.
Quem foi Benedito Antônio da Silva
Nascido em Santo Amaro, em 1822. Continuou os negócios de seu pai como comerciante e proprietário de tropas para transporte a Santos, expandindo diversas vezes seus negócios, Benedito Antônio se tornou empresário em diversos ramos e banqueiro, foi fundador da Cia. da Cantareira, Cia. de Estradas de Ferro Rio Claro a São Carlos, Cia. Docas de Santos, Banco da Lavoura, Banco del Credere, Banco dos Lavradores, Cia. Baruel e diversas outras empresas.
Na única imagem dele, nunca publicada, podemos apreciar um daguerreótipo de 1853, identificado, por sua bisneta, como sendo Benedito Antônio da Silva, então com 31 anos de idade. O daguerreótipo pertenceu a sua neta, Vera Vasconcellos Silva, e posteriormente a sua bisneta, Corina Silva Simonetti, ficava na sala da Fazenda Retiro Feliz em Taubaté.
Esta imagem é de um período que quase não existem fotografias, são raríssimas, de fato pesquisando em catálogos e acervos ainda não encontrei um retrato tão antigo tirado no estado de São Paulo, pelo menos conhecido. Foi tirado em 1853 ou antes, sabe-se pelo endereço e nome do fotógrafo que foi descoberto durante uma restauração profissional. O fotógrafo que tirou este daguerreotipo se chamava Justiano José de Barros e seu estúdio ficava em Santos entre os anos de 1852 e 1853.
Benedito Antônio foi o maior proprietário imobiliário de São Paulo até a virada do século XX (adoeceu em 1899 e faleceu em 1902), tendo sido responsável pela construção de diversos palacetes no centro histórico de São Paulo, entre estes está o antigo palacete do Carmo, Casa Número Um, conhecido atualmente como Casa da Imagem, hoje parte do sistema de Museus da Cidade de São Paulo, formando um complexo histórico com o solar da Marquesa de Santos e o beco do Pinto.
A Cia da Cantareira e o Capão – Início da urbanização da região da Paulista
A Companhia da Cantareira, empresa brasileira encabeçada por Benedito Antônio da Silva, contava ainda com outros dois sócios fundadores, o coronel Proost Rodovalho e o engenheiro britânico Daniel M. Fox.
Foi pioneira na implementação do sistema moderno de saneamento no Brasil, o projeto ficou a cargo de engenheiros britânicos contratados pela Cantareira. O projeto original foi concebido por um dos ilustres engenheiros britânicos do período, Sir James Brunlees.
A construção do reservatório e inauguração pelo Imperador Dom Pedro II, em visita a propriedade, então ainda inteiramente pertencente a Benedito Antônio, onde se instalou o Reservatório da Consolação, ainda existente e hoje é parte do sistema da SABESP, sucessora da Cantareira.
A mansão colonial, nas proximidades da Paulista, sede da propriedade
Na área em que se tornaria a Avenida Paulista onde era o caminho das Boiadas e Rua Real Grandeza, atrás do Parque Siqueira Campos era localizada a mansão colonial do Capão, que foi completamente restaurada e modernizada por Benedito Antônio, usada como residência de campo de sua família. Esta mansão foi originalmente construída pelo antigo governador e capitão-mor da capitania, José de Gois e Morais, outro parente e descendente dos fundadores do Capão, homem riquíssimo no período colonial, fez fortuna nas Minas Gerais.
Nos arredores da sede existia pomares de frutas, vinhas e criações de animais. Também estábulos para os cavalos de Benedito Antônio e uma curiosa criação de ovelhas.
Devido à falta de interesse dos filhos de Benedito Antônio pela propriedade, ele resolveu vender a parte da sede a um empresário chamado Mariano Antônio Vieira. A venda foi condicional, a prazo e parcial.
Ele também decidiu subdividir a propriedade em várias partes, na época a extensão original ocupava a partir dos arredores da Igreja da Consolação, terminando apenas na Várzea de Santo Amaro, incluindo ainda em sua área a região dos Jardins.
Benedito vendeu apenas a parte alta do Capão, que se constituía no espigão da Paulista, em sua totalidade, entre a Consolação e a Brigadeiro Luiz Antônio, a Mariano Antônio Vieira, que denominou esta nova propriedade de “Bela Cintra”.
O mapa mostra a região da então renomeada Chácara Bela Cintra com o complexo de edificios da antiga mansão colonial, sede da antiga Chácara do Capão, que ocupava os quarteirões entre as Alamedas Itu e Lorena, na altura da Rua Padre João Manuel. No mapa, à direita, vemos o traçado da Avenida Paulista e o entorno com mato virgem e mata fina.
Por outro lado, ele preservou a região dos Jardins, onde constituiu outras propriedades que foram vendidas, uma destas propriedades denominada Chácara Primavera (atual Jardim Paulista), nas imediações do Parque Ibirapuera, possuía uma residência que foi de sua viúva, d. Claudina da Anunciação. Uma das ruas possui ainda hoje a denominação de rua Claudina Silva.
A parte referente a Paulista estava inclusa na porção vendida a Mariano Antônio Vieira, que também subdividiu a parte comprada por ele e, alguns anos depois, vendeu aos engenheiros que viriam inaugurar a Avenida.
Neste mapa parcial da área original, mostra exatamente as partes que foram compradas por Mariano Antônio Vieira (pontilhado) de Benedito Antônio da Silva.
Apenas um terço da área original do Capão foi vendida a Mariano Antônio Vieira, o restante foi subdividido. Tambem a area do Reservatório da Consolação ficou de fora da venda, originalmente tambem estava dentro do Capão e foi transferida a empresa fundada por Benedito Antônio, a Companhia da Cantareira.
Luiz também nos mostrou algumas citações do artigo Chácara do Capão, escrito por A. Paim Vieira, publicado na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, 1952, que explicitam algumas informações da região do Capão.
“O Sitio era denominado “do Capão” por causa de uma imponente floresta, multissecular, que coroava o espigão da Avenida Paulista. Todos os antigos proprietários haviam sempre se esmerado em conservar com grande zelo este soberbo padrão de nossa flora local e não consentiam no mais ligeiro ato de destruição.
Por isso haviam feito desbastar o solo de moitas que embaraçassem a possibilidade de locomoção em qualquer sentido conservado, porém, tudo quanto fosse árvore de grande porte.
A floresta avultava no topo da colina, e através de sua fronde dificilmente penetrava o sol. Era povoada por abundante fauna de pelo e pena que habitava os matagais podendo caçar-se nela veados, pacas e grande variedade de aves.”
“O Major Benedito tinha por aquele sítio uma extraordinária predileção e desejava torná-lo sua residência. (…) Para isso fez esforços ingentes melhorando e adaptando o quanto pode suas instalações. Mas nem assim havendo conseguido a anuência de sua família resolveu vendê-lo e nesse propósito procurou Mariano Antônio Vieira.”
“A sede desta verdadeira fazenda nos arredores de São Paulo estava situada onde a Alameda Tietê encontra-se com a Rua Padre João Manoel no sítio ocupado pela casa que foi do finado Maestro L. Chiafarelli e hoje funciona o Externato Meira”.
“Ainda naquele lugar avultavam algumas velhíssimas araucárias chilenas que são remanescentes do jardim. Na imagem acima, ao fundo à esquerda, vemos uma casa: será que era parte da sede da Chácara do Capão?
A casa era uma vastíssima mansão dos tempos coloniais onde, segundo a tradição, morou um antigo governador de São Paulo, que provavelmente a construiu: o Capitão-Mor José de Gois Morais, 8º proprietário do sítio.
Oferecia ela o máximo de conforto que, ao tempo se poderia pretender. O salão de jantar era uma vastíssima peça retangular com cerca de 11 braças de extensão (24 metros) com muitas janelas rasgadas para a várzea do Rio Pinheiros.
Ao fundo deste amplíssimo salão estava um enorme armário embutido que, aberto, transformava-se num altar para as funções religiosas: novenas, missas, casamentos, etc. realizados no solar.
Em consequência disto a sala desempenhava também as funções de capela e daí a razão das suas avantajadas proporções, suficientes para conter donos, empregados, escravos, agregados, hóspedes e quem mais: estivesse ligado àquela residência senhorial.
O jardim parecia um bosque encantado com o seu aspecto vetusto e majestoso. Para ele descia-se por uma escadaria de pedra que ia sair fronteiro a uma vasca.”
“O banheiro da casa era, também, de madeira. Obra finíssima de tanoaria executada, provavelmente, em jacarandá.”
“Quando a família de Mariano Antônio Vieira para ele se transferiu, muitos melhoramentos e confortos tinham-lhe sido acrescentados pelo Major Benedito, que pretendia, vivamente, habitá-la.”
“Havia uma enorme quantidade de quartos suficientes para hospedar as grandes famílias da época e a de seus visitantes, consoantes, o costume, além de fartas instalações para os empregados.”
Restou da antiga propriedade apenas o belíssimo bosque – hoje parque Tenente Siqueira Campos-Trianon – que fazia parte dos jardins ornamentais da antiga sede do Capão, que foi visitada por diversas personalidades, entre elas a Princesa Isabel, o Conde d’Eu, e os príncipes imperiais. Inclusive a princesa escreveu em seu diário a respeito da imensa propriedade, mencionando que Mariano Antônio Vieira a comprou do major Benedito Antônio da Silva.
A infraestrutura estabelecida pela Companhia da Cantareira, foi feita com imenso esforço de muitos indivíduos, não apenas de seus três fundadores, mas também dos engenheiros e operários que trabalhavam em perigosas condições para construir uma infraestrutura grandiosa na Serra da Cantareira.
A antiga companhia foi fundamental para permitir a expansão e desenvolvimento de São Paulo, construindo as bases do que viria a ser então a Avenida Paulista e os arredores de São Paulo, sem a primeira não existiria a segunda. Para terminar, deixo o leitor com um pedaço de um artigo publicado pela Revista Moderna em Paris, que nos dá a impressão de um viajante em 1898:
Essa reconstituição histórica até a inauguração da Avenida Paulista só foi possível pela excelente e detalhada cooperação de Luiz E. Simonetti. Agradecemos mais uma vez pela gentileza de compartilhar seus conhecimentos com a gente. Dividimos com todos o perfil de nosso colaborador.
Ele é formado em administração de empresas, residente em Ontário, no Canadá. Há muitos anos se interessa por pesquisas históricas e genealógicas em seu tempo livre. Já revirou arquivos no Brasil, Itália, Portugal, Canada e Estados Unidos em busca de informações. Sofre de curiosidade insaciável e esta sempre querendo aprender alguma coisa, lendo ou fazendo arte (visuais), vícios incorrigíveis.
Contribua com a Série Avenida Paulista: se tiver uma foto antiga em que este casarão/edifício/local público apareça ou se conhecer alguém que possa fornecer mais informações sobre a residência ou edifício e pessoas relacionadas (família, amigos e outros), entre em contato com a gente. Muito obrigada!
4 thoughts on “A Avenida Paulista em sua origem”
Rosana Barbieri
Bom dia
Sempre enriquecedor e fascinante .
Agradeço muito o trabalho de vocês.
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Luciana Cotrim
Muitíssimo obrigada!
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Delson Gabriel Silva Jr
Desde dezembro do ano passado, estou buscando documentos da minha familia portuguesa/ Descobri pela minha familia, que meu trisavô portugues tinha uma chacara na Alameda Itu. Para minha surpresa encontrei varios batismos na Igreja do Divino Espirito Santo da Frei Caneca, e pesquisando encontrei que a Rua Bela Cintra era praticamente uma colonia de familias portuguesas…..Muito interessado pelas minhas raizes com uma historia tao “perto” de mim….porem , que nunca soube nada. Parabens pela pesquisa.
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Luciana Cotrim
Muitíssimo obrigada! Temos muito em comum, pois uma grande parte da população te origem europeia e se pesquisarmos haverá muitos laços em comum. Escrevi várias histórias de famílias portuguesas que moraram na Avenida Paulista, talvez você conheça alguma delas.
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